A primeira camada dessa discussão repousa sobre o princípio da simplicidade. De fato, diferentemente de esportes como o golfe ou o tênis — que requerem estruturas caras e equipamentos específicos —, a corrida de rua pode acontecer em qualquer esquina, avenida ou parque. É uma atividade que dispensa mensalidades, técnicos especializados ou locações fechadas. Essa aparente liberdade geográfica e econômica cria a ilusão de que correr é um ato universal. E, sob certo ponto de vista, é. Crianças em comunidades carentes correm descalças nas ruas de bairro. Trabalhadores correm no entorno de suas casas antes de iniciar longas jornadas. Pessoas mais velhas — como este que vos escreve, aos 51 anos — saem cedo para seus trotes matinais como forma de cuidar da saúde. Nessa metáfora do asfalto como espaço de liberdade, a corrida transforma-se em um grito de autonomia, um gesto contra o sedentarismo e as amarras da vida moderna.
Entretanto, como em toda metáfora bonita demais, há rachaduras invisíveis — e perigosas. É preciso reconhecer que, ainda que correr seja possível em qualquer lugar, fazê-lo com segurança, constância e qualidade exige recursos que nem todos possuem. O tênis, por exemplo, não é um mero detalhe. Usar calçados inadequados — ou muito gastos — pode causar lesões sérias, como fascite plantar, tendinites ou fraturas por estresse. Bons tênis custam caro, especialmente no Brasil, onde a carga tributária sobre artigos esportivos é elevada. Além disso, há os custos invisíveis: roupas apropriadas, relógios com GPS, inscrições em provas, deslocamentos, exames médicos, suplementações alimentares, fisioterapia e até o acesso a grupos de corrida, que muitas vezes exigem mensalidades. Como afirmar, portanto, que a corrida é para todos, quando a estrutura que permite correr com dignidade está, na prática, restrita a poucos?
Outro ponto que merece destaque é o ambiente onde se corre. Nem todas as ruas são seguras, iluminadas ou planas. Moradores de bairros periféricos enfrentam obstáculos reais — e diários — ao tentar treinar. O medo da violência, a ausência de calçadas adequadas e o trânsito intenso criam um cenário hostil, onde a corrida deixa de ser prazer e torna-se risco. Mesmo parques públicos — que teoricamente deveriam ser oásis de acessibilidade — concentram-se nas regiões centrais ou de classe média alta. Ou seja, para muitos brasileiros, o simples ato de correr já é, em si, uma barreira geográfica e social.
Ademais, o tempo disponível é um fator excludente pouco discutido. Para que a corrida seja incorporada à rotina, é necessário reorganizar prioridades, ter apoio familiar e uma jornada de trabalho que permita pausas. Enquanto alguns desfrutam do luxo de correr ao nascer do sol — antes de um expediente com horários flexíveis — outros mal conseguem descansar após um dia duplo de trabalho e deslocamentos demorados em transporte público. Aqui, o relógio não mede apenas pace, mas escancara desigualdades: o tempo livre virou privilégio.
No entanto — e é aqui que a reflexão se torna mais complexa — mesmo diante dessas barreiras, a corrida de rua ainda consegue ser um ponto de encontro entre diferentes mundos. Em provas de rua, vemos bancários correndo ao lado de pedreiros, professores dividindo espaço com donas de casa, aposentados correndo lado a lado com jovens estudantes. O asfalto, nesse contexto, se transforma em palco de igualdade temporária, onde o suor nivela as diferenças — ao menos por alguns quilômetros. Essa capacidade de unir — ainda que simbolicamente — é o que sustenta a ideia de que correr é para todos. A corrida, portanto, é um ideal: uma utopia prática, que sobrevive apesar das desigualdades, mas não as apaga.
Assim, se por um lado ela inclui — porque exige pouco em sua essência —, por outro ela exclui — porque para praticá-la com regularidade, segurança e evolução, o custo é alto. E não se trata apenas de dinheiro. Trata-se de capital social, de rede de apoio, de tempo disponível e, sobretudo, de saúde física e emocional. Pessoas com deficiência, por exemplo, enfrentam obstáculos ainda maiores, embora o movimento do esporte adaptado tenha avançado significativamente. Mulheres também vivem desafios únicos — como o assédio nas ruas — que exigem estratégias específicas para garantir a segurança. A corrida é para todos? Sim, mas em condições desiguais.
Logo, é necessário que a sociedade, os governos e as marcas que lucram com esse universo esportivo reconheçam essa contradição. Incentivos públicos, como criação de pistas de corrida em bairros periféricos, eventos gratuitos e distribuição de tênis por meio de projetos sociais, são caminhos para tornar o acesso mais real. Iniciativas de inclusão — como grupos de corrida para pessoas com deficiência ou com baixa renda — precisam ser mais valorizadas e divulgadas. Além disso, o discurso motivacional que domina as redes sociais deve vir acompanhado de um olhar crítico. Frases como “se quiser, você consegue” podem inspirar — mas também culpabilizam os que não conseguem, ignorando as condições sociais que os impedem.
Portanto, afirmar que a corrida é para todos exige mais do que entusiasmo — exige responsabilidade social. É preciso sair do campo das metáforas e enfrentar a realidade com coragem. A corrida de rua não é apenas um esporte: é um termômetro da desigualdade. Cada passo que damos revela o quanto ainda falta para que todos corram — de fato — nas mesmas condições. A liberdade que a corrida representa deve ser ampliada, protegida e democratizada. Porque correr, mais do que movimento, é resistência. E resistir, nos dias de hoje, é um ato político.
Finalizando, a corrida de rua continua sendo um símbolo poderoso de superação pessoal. Contudo, para que ela se torne verdadeiramente inclusiva, precisamos encará-la com um olhar mais honesto. Afinal, o asfalto pode até ser o mesmo — mas os caminhos que levam até ele ainda são muito diferentes. E enquanto não tornarmos esses caminhos mais acessíveis, correr continuará sendo um privilégio disfarçado de liberdade.
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