Correr mais do que o planejado: vitória ou frustração?

Ilustração de um corredor parado em uma estrada que se divide em dois caminhos, um marcado com 5 km em cores azuis e verdes (disciplina) e outro com 10 km em vermelho e laranja (impulsividade), representando o conflito interno entre planejamento e impulso na corrida de rua.
Saí de casa decidido: hoje seriam apenas 5 km. Nada além disso. Era o que estava no meu planejamento, o que cabia dentro da rotina e o que faria sentido para o descanso do corpo. Mas corredor impulsivo, especialmente quando a mente carrega uma inquietação permanente, não negocia com planilha. Negocia com o próprio impulso — e quase sempre perde.

No primeiro quilômetro, tudo parecia sob controle. Respiração encaixada, passadas soltas, um ritmo confortável. Eu me lembrava da meta a cada passo: “Cinco e acabou. Hoje não é dia de forçar.” O problema é que a corrida não se faz apenas de músculos e fôlego. Ela se faz, principalmente, de pensamentos. E, em mentes inquietas, pensamentos raramente andam em linha reta.

Foi por volta do terceiro quilômetro que a fissura apareceu. O corpo estava leve, a sensação era boa, e a mente começou a cochichar: “Se está assim, por que parar tão cedo? Você pode ir além. Aliás, você sempre vai além.” É nesse ponto que a disciplina se desmancha como papel molhado. Não importa o que estava combinado, não importa a lógica da progressão. O que vale é o impulso do momento, aquele ímã invisível que puxa o corredor para distâncias maiores, mesmo quando não há necessidade.

No quinto quilômetro, o marco final do meu plano, eu deveria ter parado. Mas a verdade é que, ao chegar lá, senti que a corrida ainda não tinha começado de verdade. Parecia desperdício encerrar tão cedo. Então, estiquei mais um pouco, como quem diz: “Só até ali, nada demais.” Esse “ali” virou 7 km. Depois, 8. Quando olhei novamente, já eram 10 km completos.

Fisicamente, não houve consequência ruim. Estou acostumado a essa distância, já a percorri dezenas de vezes. Nenhuma dor, nenhum excesso além do habitual. Mas o incômodo veio depois, em silêncio: a frustração de não ter cumprido o que havia planejado. Parece contraditório, eu sei. Para quem olha de fora, parece uma vitória. “Você correu o dobro, parabéns!” Mas, para mim, ficou a sensação de derrota. Não contra o corpo, não contra a resistência, mas contra a minha própria incapacidade de seguir o roteiro traçado.

É curioso como o impulso veste a máscara da conquista. Enquanto corro, sinto-me forte, capaz, inquebrável. Mas, quando termino, percebo que não foi bravura, foi fuga. Fuga da disciplina, fuga do limite autoimposto. O que pareceu superação no asfalto, revelou-se fragilidade no espelho: mais uma vez, não consegui parar onde disse que pararia.

E é aqui que mora o dilema do corredor neurodivergente. Não se trata de falta de condicionamento, nem de excesso de ambição. Trata-se de uma mente que vive em permanente aceleração, sempre desconfiada do “suficiente”. A sensação de que 5 km bastariam não se sustenta diante da urgência de ir além. É como se a planilha fosse um convite para ser ignorada, e não um guia para ser seguido.

Correr mais não foi o problema. O problema foi não ter conseguido correr menos. Essa é a verdadeira frustração. Porque a corrida, para mim, também deveria ser um exercício de controle, de consistência, de aprender a lidar com limites autoimpostos. Mas o impulso insiste em atravessar a linha antes do tempo, como um corredor que larga antes do tiro.

No dia seguinte, olhando para trás, percebi que não ganhei nada extra por ter feito 10 km em vez de 5. O corpo teria se beneficiado mais do descanso programado. A mente teria sentido mais orgulho de si mesma se tivesse conseguido respeitar a meta. A vitória real teria sido parar no quilômetro certo, não esticar até dobrar a distância.

O mais curioso é que, em outros contextos, as pessoas valorizam esse tipo de impulso. “Você é determinado, não desiste fácil.” Mas isso é apenas uma parte da história. Determinação não é sempre ir além. Às vezes, determinação é saber parar no momento certo, mesmo quando tudo em você grita para continuar.

Enquanto corredor, sei que a evolução não vem apenas de quilometragem acumulada. Vem da inteligência em saber dosar, respeitar, construir. Mas, como neurodivergente, sei também que o maior desafio não está no corpo. Está na mente que não aceita limites simples, que transforma cada meta em um convite para o excesso.

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No fim, restou a lição amarga: corri 10 km quando queria correr apenas 5. Não por falta de força, mas por falta de freio. E talvez esse seja o verdadeiro percurso que ainda preciso aprender a dominar: não a distância da rua, mas a distância entre o que planejo e o que realmente faço.